J.
Encostado ao alumínio fosco da marquise da cozinha, J. imaginava-se transportado numa viagem subliminar, rumo a um destino que ainda não vislumbrava. Mas que desejava alcançar com uma intensidade inaudita para si. O fumo do cigarro aceso à força de um fósforo dos grandes invade-lhe os olhos, que esfrega maquinalmente, ainda absorvido pela ideia de não se encontrar, simplesmente, no lugar onde tem plantados os pés. Frios. Os pensamentos correm-lhe à velocidade que a imaginação dos olhos lhe permite: estar e não estar num lugar agora, estar ali, depois saltar para o topo de uma montanha qualquer de cume nevado, para o emaranhado verde de uma floresta tropical, ou, simplesmente, para a crista do mar. Andar sobre as águas. Oh, sim. Milagre dos milagres: flutuar sem medo sobre o manto líquido desse corpo imenso recortado a ondas e marés.
J. estava, assim, num lugar qualquer quando a beata do ventil lhe chamuscou a unha do indicador. Fosga-se! Viajar parece difícil. O dedo ardia-lhe como se de uma comichão acesa e fervente se tratasse. Soprou. Esqueceu-se do dedo, manteve o sonho desperto e deparava agora com uma paisagem de contornos assustadoramente irregulares. As cores, róseas, confundiam-no. Não. Impossível. Aquilo não era uma montanha. Parecia um rastro de fumo, mas de onde emergiam picos de uma altura fabulosa. Immedível, pensou. A ideia de infinito aparecia-lhe de uma forma a tal ponto precisa, concreta, quase palpável, que, finalmente, acedera a concordar com um conceito há muito silenciado: universo.
Mas — há sempre um “mas” nestas historietas de alcova — , este mesmo corpo, que ainda agora lhe parecia interminável, tinha um contorno. Com um pouco mais de atenção podiam vislumbrar-se pequenas árvores, dispostas sem ordem, mas que deixavam visível o solo de onde emergiam. Estranho. A primeira ideia a ocorrer-lhe resumia-se ao (inacabado).
2 Comments:
Uma viagem que apesar de recomendada me transportou para dentro de mim e, ao mesmo tempo, para muito longe.
Curioso terem premanecido em Maio as palavras...
Parabéns... fico à espera do Julho, do Agosto....
correcção: permanecido
Enviar um comentário
<< Home